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Do Rio Grande do Sul a Coimbra


Durante 26 anos vi carros com placas de três letras e quatro números pretos, com fundo de metal.
Andei por avenidas grandes e largas – muitas que atravessavam a cidade -, e proporcionavam trajetos de no mínimo 20 minutos, de carro, quando o trânsito estava bom.
Pouco andei a pé – a caminhada nunca foi uma opção de meio de locomoção até um shopping, a casa de amigos ou, muito menos, para curtir a noite em algum bar ou festa.
A ideia de viajar de avião por mais de 5 horas e ainda estar dentro do mesmo país sempre me pareceu normal.
O sotaque cantado e o “Guria, tu nem sabe”, natural após finais de semana, soavam perfeitamente bem, em plena naturalidade e harmonia para os meus ouvidos.
Escutar gringos conversando aleatoriamente pelas ruas, e ter que eventualmente prestar informações em inglês, era comum, no máximo, ao andar pelas ruas do Rio de Janeiro no carnaval (acho que descobri o porquê do meu inglês tão enferrujado).
Encontrar os velhos e bons amigos era “tarefa” cumprida semanalmente – aqueles que nos conhecem melhor que nós mesmos e nos proporcionam, mesmo em silêncio, o ambiente mais acolhedor possível.
Só não cumpria de forma tão religiosa como fazia com as visitas à avó – o chá da tarde com bolachas plic-plac era a garantia do imensurável valor das coisas mais simples da vida.
Há meio ano, passei a ver carros com placas em detalhes azuis, estrelinhas da União Europeia e uma fração em amarelo – que descobri ser o mês e o ano do carro. (Que coisa destoante e estranha...)
Ruas pequenas e estreitas passaram a fazer parte do meu caminho. Demorar 10 minutos para chegar a qualquer lugar já é tempo demais (a não ser que eu esteja perdida, o que não tem sido anormal).
Andar a pé transformou-se em uma ação mais frequente (embora eu confesse não ser minha atividade preferida).
As distâncias entre lugares relevantes tornaram-se incrivelmente menores. Há pouco, passei por três países, de carro, em uma semana (só não aconselho dirigir em volta do Arco do Triunfo – é uma árdua prova de resistência).  
O outrora familiar sotaque cantado já se perdeu na minha memória rotineira. Há alguns dias escutei um “Bah, guria” aleatório e até agora espero encontrar essa pessoa desconhecida e abraça-la.
Agora eu sou a “miúda” ou a “menina”. E as pessoas conjugam os verbos. E falam rápido. Muito rápido. Inclusive diria ser uma das principais características dos portugueses a paciência, dada a quantidade de vezes que precisam repetir a mesma frase, a fim de se fazer entender pela enorme massa brasileira que já ocupa as ruas das cidades.
Escutar conversas em línguas que mal imagino qual sejam virou rotina. Assim como ser abordada, - ao atravessar, atrasada para a aula, o enorme pátio da Universidade -, por gringos perdidos em busca da biblioteca Joanina ou dos alunos vestindo a capa preta do Harry Potter.
Com muito pesar, encontrar velhos amigos – daqueles que nos conhecem melhor que nós mesmos – já não mais faz parte dos meus dias.
Da mesma forma, os chás da tarde e bolachas plic-plac com a avó resumiram-se a conversas virtuais por chamadas de vídeo.
Para isso, o novo cenário de vida não proporciona – e nunca proporcionará – realidades merecedoras de comparação.
E diante dessa imensidão de costumes, fatos e hábitos - de que outrora julguei que seria difícil abdicar -, descobri com o que é verdadeiramente difícil lidar: o peso da bagagem que nunca sequer cogitamos materialmente carregar. E obrigatoriamente fica para trás.
Grandes mudanças tornam o indispensável da vida grandiosamente pequeno.
E encerro registrando minha estranheza quando vi, há alguns dias, o anúncio de venda do carro de uma amiga brasileira – muito estranha aquela placa com três letras e quatro números, pretos, com fundo de metal.


Janeiro de 2019