Meu peixe, Prudêncio, morreu.
Prudêncio vivia na minha sala, sempre bem iluminada,
em um aquário que eu limpava regularmente.
Eu gostava muito de tê-lo por perto. Prudêncio me
servia como um bom ouvinte. Todas as vezes que eu precisava desabafar ou,
principalmente, refletir sobre decisões que tinha de tomar, sentava-me perto do
Prudêncio, observava-o a nadar e, inexplicavelmente, a transparência da água,
de alguma maneira, se transmitia para os meus pensamentos e me trazia
importantes esclarecimentos...
Sempre defendo que o ato de refletir é uma ótima
ferramenta – até diria indispensável – para utilizar abusadamente antes dos
passos que damos na vida. Mesmo que a transparência da água de um peixe chamado
Prudêncio seja a principal fonte de inspiração.
Sem dúvidas, a morte do Prudêncio foi
um fato altamente lamentável. E nada esperado. Fruto de atitudes imprudentes,
eu diria, com ironia. Em que pese de amigos meus.
Há pouco tempo, tive que me ausentar de casa por
alguns meses. Resolvi pedir para alguns amigos cuidarem do Prudêncio, uma vez
que não havia a possibilidade de levá-lo comigo.
Como me ausentei por demasiado tempo, combinei os
cuidados com mais de um amigo. Assim, o Prudêncio ficaria um pouco com cada um.
Infelizmente não consegui combinar a função com amigos que se conhecessem entre
si, mas, imaginei que, em se tratando de tarefa tão simples, não haveria
maiores discordâncias ou complicações. Bastava se encontrarem nas datas
combinadas e trocarem eventuais informações sobre os cuidados básicos
necessários.
Para minha surpresa, ao se aproximar o final da minha
viagem, recebi uma ligação com a triste informação sobre a morte do Prudêncio.
Assim que retornei, entendi pertinente marcar um
encontro entre todos os meus amigos que haviam oferecido ajuda, para tentar
entender o motivo de tal incidente.
Todos compareceram. Diante da conversa, pude perceber que
à noção de “cuidado básico” foi atribuído, estranhamente, um alto nível de
subjetividade.
Todos discutiam e se contradiziam, numa desesperada
tentativa de se escusar de culpa – como se eu estivesse em busca de um culpado,
enquanto, em verdade, apenas estava em busca de satisfações – exigíveis mesmo
no caso de o Prudêncio não ter morrido!
Em certo ponto, notei que grande parte da discussão referia
a água do aquário. Os dedos se apontavam uns aos outros, numa inquietante
alegação de que “a água não parecia turva o suficiente para limpar, então
deixei para o próximo, que, obviamente, notaria a turvação e limparia.” Como
seria possível tanta divergência sobre o que constitui uma água limpa ou não?!
Como a aparência de uma água turva e, consequentemente, prejudicial ao Prudêncio,
podia não ser óbvia aos olhos de alguém?! Como era possível não notarem a
ausência daquela transparência, tão evidente, que tanto clareava e orientava
minhas ideias e decisões?
Naquela ocasião, mesmo levando em conta que nem todos
são obrigados a compartilhar da mesma percepção sobre como se apresenta uma
água cristalina, não desconfiar de uma omissão (mal) intencionada fez-se missão
impossível. Em verdade, as alegações que “não consideraram a água turva o
suficiente para limpar” mais pareciam se fundar no reconforto das suas próprias
comodidades em não ter o trabalho de limpar o aquário – e deixar a tarefa para
o próximo. Em que pese estivessem, insistentemente, a defender seu ponto de
vista (pouco crítico, digamos) sobre a qualidade da água...
E foi assim, em meio a campo minado de divergências
sobre o óbvio – ou sobre o mínimo esperado do bom senso – que o Prudêncio
morreu. Em meio a tamanha atuação de imprudência, o Prudêncio morreu.
...
Hoje, para tentar amenizar a situação e o impacto da
ausência do Prudêncio nas minhas tomadas de decisões e desenvolvimento de
ideias, venho aliar-me à ideia de que a imprudência dos meus amigos pode ter
sido tal somente sob o meu ponto de vista! Talvez, a transparência que eu
almejava ultrapassava demasiado o conceito básico de uma água limpa. Em
verdade, essa nova percepção me conforta. Além do mais, não quero criar
inimizades.
Meu peixe Prudêncio morreu. E, com ele, se foi a
transparência que inspirava meus ideais...
19.04.2020