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Trem da vida


Há muito tempo corriam boatos sobre um trem que viajava sem rumo, não cobrava passagem e o caminho era indefinido, com paradas imprevisíveis. Certa vez decidi experimentar a sensação.
Entrei no primeiro vagão e, como não sabia quanto tempo duraria a viagem, escolhi um lugar confortável e ali me acomodei. Era um ambiente agradável, porém eu ainda sentia uma vontade de conhecer melhor, tinha a impressão de que havia muitas coisas a serem oferecidas por lá.
Olhei ao redor e me deparei com algumas pessoas; poucas, mas aparentemente bem receptivas. Algumas pareciam estar ainda se adaptando, assim como eu; outras, já estavam tão bem ambientadas, que nada lhes parecia surpreendente.    
Volta e meia tentava enxergar o vagão frontal, onde geralmente se encontrava o maquinista, mas parecia estar vazio, o que me assustava. Mas, seria de fato impossível o trem estar andando sem alguém na direção. Continuei a viagem, tranquila.
Com o tempo, e algumas convivências, comecei a perceber que a maioria se deslocava para os vagões mais distantes e não voltava mais. Como a curiosidade é o que nos move, me acomodei no segundo vagão. Era tudo diferente (ou eram meus olhos). Parecia tudo estar mais claro e, além disso, ensinavam muitas coisas por lá; coisas que diziam ser úteis para se conseguir lidar com  desafios futuros.
Logo me dirigi para o vagão seguinte. Continuava aprendendo muito, o que me ajudava a enfrentar aquela rotina sobre rodas facilmente. Algo fascinante era o fato de não haver a possibilidade de retorno, como se uma força invisível nos impedisse de dar passos para trás. E o curioso: em todas as entradas (ou saídas) dos vagões havia um homem uniformizado, que avisava sobre a irreversibilidade de mudança de direção. Isso começou a me instigar: a cautela para seguir em frente deveria ser grande, devido a tudo e todos que, possivelmente, ficariam para trás. Descobri que o segredo era selecionar uma bagagem somente com o necessário, guardar apenas quem era insubstituível, os bens materiais que eram indispensáveis, e continuar. Afinal, carregar muito peso tornaria mais árduo o trajeto.
Comecei a perceber, também, que muitas vezes, apesar de não ter escolhido subjetivamente determinadas pessoas para levar comigo, estas me acompanhavam por conta própria. Muitos dos passageiros com que me deparei logo à entrada continuavam ao meu lado; outros permaneceram nos seus mesmos vagões por medo; e outros, ainda, desceram em alguma das diversas paradas do trem, e não subiram mais. E claro, cada um tendo compartilhado e contribuído com cada momento, bom ou ruim, que passei.
Conforme seguia em frente, através dos vagões, aprendendo cada vez mais, conhecendo cada vez mais gente, mais distante ficava a suposta cabine do maquinista e, inexplicavelmente, não me importava mais em vê-lo: afinal, tudo estava indo bem.
Mesmo diminuindo, em inúmeras oportunidades, o peso da minha bagagem (ora por alguma parte dela não condizer mais com meus valores; ora por, simplesmente, eu não condizer com os valores dela), em pouco tempo já voltava a precisar de mais força para carregá-la. E a partir disso, deduzi: aquilo que consideramos indispensável ou insubstituível é relativo – o leite materno não satisfaz mais um lobo faminto, ansioso por alcançar sua presa.
Entrei em alguns vagões onde não havia assentos vagos; mantive-me em pé. Passageiros que chegavam, antes de vagar algum lugar, permaneciam a aguardar também. O cansaço chegava rápido. Conseguir equilibrar-se, por tempo incontável, com aquele balançar sobre rodas era tarefa árdua. Houve um momento, durante minha espera, em que um assento vagou; virei-me para pegar a bagagem, mas antes que chegasse ao lugar, outro passageiro sentou-se, rapidamente, embora estivesse ciente da minha espera, muito mais longa que a dele. Como já foi dito, cada vez eu aprendia mais: muitos passageiros só viajavam para atrapalhar a viagem alheia; devia-se tomar muito cuidado com quem se lidava.
Certo dia, ao chegar a um novo vagão, logo ao abrir a porta encontrei-me  com passageiros que aplaudiram minha presença. Muitos me abraçaram, elogiando meu conhecimento e minhas atitudes; outros, mais tímidos, apenas sorriam, de longe. Aqueles que estiveram sempre ao meu lado – companheiros eternos - contaram-me emocionados: “Apenas os que tiveram paciência e força para vencer todos os obstáculos, recebem  passagem para entrar neste vagão”.
Um dia acordei com muita dor, que atribui ao excessivo peso da bagagem: meus ossos já não eram os mesmos. Comecei a considerar a possibilidade de descer na parada seguinte, numa daquelas paradas imprevisíveis feitas pelo condutor invisível. Entretanto, eu não sabia como parar o trem. Se não havia maquinista, quem tinha esse poder?
Enquanto pensava no que fazer, detive-me a olhar pela janela, admirando as paisagens; uma mais bela que a outra. Repentinamente, minha atenção foi desviada para um reflexo no vidro.  Era minha própria imagem e, para meu assombro, a imagem refletia-me a conduzir o trem.
Levantei-me assustada, mas certa do que ia fazer; ao me aproximar da saída, as portas se abriram para mim. Sabia que um pouco da minha alma ficava para trás, presa naquele trem em que não viajaria mais.
Quando já me achava distante dessa parada, que me parecera tão imprevisível no começo, olhei para trás por uma última vez: outro trem se encontrava pronto para partir...



Fevereiro de 2013